Edson da Silva, de 77 anos, conhecido pelo apelido de “Profeta” na comunidade artística campo-grandense, morreu na madrugada da 5ª-feira (20. agosto) em Curitiba (PR), em decorrência de complicações devido a um transplante de fígado. Ator e servidor público em Mato Grosso do Sul, ele atuou na fundação da Associação Campo-Grandense de Teatro e também na criação do Fórum Estadual de Cultura. Profeta deixou esposa e uma filha. No último dia 10 de agosto, ele havia feito uma publicação na sua rede social que trazia à tona a realidade dos artistas idosos sul-mato-grossenses e brasileiros: total abandono. Em texto emocionante, Profeta alerta já no título da publicação: “Se eu morrer amanhã o “Bozo” vai dizer: E daí, eu não sou coveiro!!!”, escreveu.
O ator, diretor, escritor e poeta ‘Profeta’, dizia ter nascido em Cassilândia e começou suas inspirações artísticas nos circos e teatro ainda na década de 60. Como vendedor de chiclete, assistiu durante anos muitas peças de teatro (aqueles dramalhões maravilhosos da época) e fazia suas esquetes ainda criança, brincando de teatro. “Dizia que era da barranca do rio Aporé”, lembrou seu amigo mais próximo, Paulo Preché, de 61 anos, também diretor, ator e ex-funcionário público.
Quando jovem, Profeta participou de esquetes em grupos de igrejas desenvolvendo textos bíblicos. Ele saiu de Mato Grosso do Sul em meados da década de 70, tendo passado por São Paulo, Goiás, Minas Gerais e Rio de Janeiro, sempre fazia teatro amador por onde passava.
Regressou para MS na década de 80 e atuou na supervisão rodoviária na área de engenharia. Aqui, um detalhe curioso, ele trabalhava em várias áreas. Autodidata, trabalhou até mesmo com analista de solo.
No início da década de 90, veio morar em Campo Grande e resolveu retornar em definitivo para o teatro, foi então que fundou o “Teatral Minas da Imaginação” para trabalhar com peças temáticas com crianças e adolescentes visando o ator/cidadão. Lá ele participou de inúmeros trabalhos como: Oficinas de teatro, poesias, contação de histórias, cursos de cinema e televisão. Também montou e participou de vários espetáculos.
ATIVISTA CULTURAL
O artista é considerado entre os agentes culturais uma das principais figuras de luta, a qual marca seu embate com a administração pública para fazer nascer o Sistema Municipal de Cultura em Campo Grande e fazer acontecer o ‘1% para a Cultura’. “A maior importância dele, é que ele foi um batalhador de políticas culturais…Além de ser um grande artista. Trabalhou na instalação do Sistema Estadual de Cultura, lutou pelo Fomteatro, é ideia dele! E a grande articulação dele com todo tipo de político… Transitava muito bem… Ele era mais do que tudo, um grande guerreiro”, disse Beto Figueiredo, de 64 anos, diretor do Grupo de Teatro Senta Que o Leão é Manso.
Seu amigo pessoal e colega de trabalho no Museu da Imagem e do Som, Preché, lembrou que Profeta era uma pessoa muito dedicada, perfeccionista. “Muito certinho com as coisas. O pessoal até achava ele ‘carne dura’. No teatro também ele tinha essa preocupação de fazer as coisas certinhas, bem feito, muito certo. Ele era detalhista no cenário, no texto”, iniciou . O amigo ressaltou que ao lado de Profeta conseguiram articular a criação das principais leis de incentivo à Cultura ativas hoje em MS. “Ele foi muito importante para a criação do FIC, do FMIC e do FOMTEATRO, foi um projeto de lei que a gente ficou com ele embaixo do braço. O Profeta foi uma das pessoas boas para negociar, para fazer acontecer a Lei”, disse.
O artista e ativista era conhecido por ser muito polêmico. “Ele negociava, era brigão, mas sempre estava com conhecimento em primeiro lugar”, afirmou Preché.
Nos últimos anos de vida, Profeta fez várias intervenções cirúrgicas durante tratamento de ascite, chamada popularmente de barriga d’água. Devido as intervenções para retiradas de líquidos ele perdeu muitos quilos. “Ultimamente ele estava muito bem, estava fazendo mais de 40 minutos de exercícios. Ele estava até montando um estúdio de gravações e me convidou para um trabalho: apresentar peças nas igrejas gratuitamente, era um retorno de tudo que o teatro deu para ele a vida toda”, contou.
Paulo Preché comentou o contexto da publicação feita por Profeta pouco antes de morrer e levantou as ausências de respeito aos artistas em MS e no Brasil. “Qual foi o dia que o estado cumpriu com o atendimento aos artistas? Qual o teatro que temos no estado? Nós temos o teatro Octávio Guizzo, quantos anos está fechado? E não é só com teatro, no Circo nem se fala… Beth e Bethinha… Helena Meireles, a coitada morreu fora do Estado. Não teve nem uma casinha para ela! O descaso é em geral, está na estrutura física, está em tudo”, lamentou.
“Sempre gostei da verdade dele. Garra naquilo que ele fazia… Eu admirava muito a luta dele. O Profeta e o Paulinho Preché são referências de circulação com espetáculos para nós. Também em todos os movimentos de engajamento político ele estava. Muitas vezes ele era incompreendido, a gente foi compreender agora há pouco tempo”, disse Mauro Guimarães, integrante do Circo do Mato, grupo de teatro com atuação há 15 anos na Capital.
Para Mauro, a grande problemática que existe na vida artística é um sintoma brasileiro. “A gente não consegue reconhecer essas pessoas. A própria classe é muito ingrata com isso. O Profeta estava com a gente até agorinha. A gente vai perdendo essas pessoas e só toma algum tipo de atitude quando já se foram. Essa é uma problemática brasileira. A gente banaliza tudo no Brasil. Estou falando de uma experiência que tive na América do Sul, na Bolívia a gente já percebe que o artista tem reconhecimento, é valorizado”, disse Mauro. E acrescentou. “O Profeta foi uma pessoa que manteve a chama de luta acesa”.
O ator, diretor e dramaturgo Jair Damasceno, de 72 anos, tem 48 anos de atividade cultural em MS e disse que sem dúvidas Profeta tem importância muita grande na luta pela política cultural. Jair lamentou a passagem do colega e disse que ele foi um ativista dos artistas do teatro. “Por buscar a lei, buscar reconhecimento. Ele foi um dos pioneiros em ativismo em defesa do artista do teatro”, classificou.
Jair Damasceno avaliou que com a pandemia ficou escancarado o desprezo com que é tratado o idoso e principalmente o artista idoso no Brasil. Eu nunca vivifinanceiramente do teatro, mas isso nunca deixou de ser intenso. Eu vejo, que com a pandemia, escancara um descaso com que o artista é tratado… Em Campo Grande, um ou outro que acredita no caráter transformador da arte. Isso não me faz um cara triste, não me faz um cara decepcionado. Eu devo muito da minha personalidade ao meu amor pelo teatro. Eu não tenho mágoa, esse país é assim, eu espero que mude”, pediu.
Outro conhecedor da atividade artística, política cultural realizada por Profeta, é o ator e diretor Edilton Ramos, de 61 anos. Ele contou que ele e Profeta tinham amizade respeitosa, e que ele o admirava muito, que eles tinham planos para 2021. “Em 2021 eu tinha a vontade de convidá-lo para fazer Nicodemos na Paixão de Cristo, não deu tempo, fica para a próxima. Ele deu a contribuição dele, não resta a menor dúvida”, disse Ramos.
Trabalhador de longa data em Campo Grande, Edilton lamentou o desrespeito do poder público com os artistas locais e o modo como o artista idoso é desconsiderado até mesmo pela classe artística. “Aqui na nossa cidade há um desrespeito muito grande. Falta de consideração, parece que aqueles que estão com os cabelos brancos estão incomodando”. Porém, ele disse estar atuante e não se preocupa com idade na hora de realizar suas ações culturais. “Eu só me lembro disso [que sou idoso] quando me olho no espelho”, finalizou.
O ator, diretor e iluminador cênico, Espedito Di Montebranco revelou um Profeta que poucos conheceram. Apelidado de “Garotinho” por Profeta, Espedito contou que sua relação de amizade com o ativista é parte da sua adolescência, aos 13 anos, quando foi levado ao mercado de trabalho como o primeiro jovem mirim. “Aos 13 anos eu fui para o Dersul (o que hoje é a Agesul), ele trabalhava com análise de solo lá… Ele era um cara que entendia de Lei, ele sempre gostou das leis. É, sem dúvidas foi o funcionário público que mais processou o estado. Ele dizia para mim sempre – garotinho, nós precisamos do FOMTEATRO!”, lembrou.
Espedito emitiu um alerta – essas pessoas fazem enorme falta para todos. “Ele sempre foi um cara que articulou dentro da Câmara de Vereadores, dentro da Assembleia… Ele não achava, ele sabia do que ele estava falando. Muitas vezes ele não foi entendido, mas hoje as pessoas compreendem. Ele conseguiu fazer o Fomteatro, o Fmic. Conseguiu porque foi atrás das Leis. A gente está perdendo essas pessoas que tomam as frentes”, alertou.
PERDA FALTAL
As lutas de Profeta pelo bem de todos nunca haviam desacelerado, até a 3ª-feira, 30 de outubro de 2012, quando perdeu sua principal aliada: sua diretora teatral, sua filha Érika Luana da Silva, de 25 anos, que morreu em acidente de trânsito, na Avenida Mascarenhas de Moraes, região do Bairro Coronel Antonino, em frente ao Terminal General Osório, em Campo Grande.
Segundo Espedito, a fatalidade aconteceu logo que o artista se aposentou para dedicar-se integralmente ao seu trabalho no teatro. “Depois que a filha morreu ele ficou uns 8 anos sem sair de casa. Ele ficou fechado, não queria receber visitas”.
Espedito explicou que no último ano, Profeta começou a tentar se recuperar da perda e que estava esperançoso com o sucesso no tratamento que realizava. “Era um cara que estava em desespero para voltar a atuar, foi para cirurgia esperançoso, disse que iria sair bem…Um cara fora do comum, tanto para cultura, tanto em cima do palco, um ator maduro, um diretor maduro. Uma pena que essa garotada não o tenha conhecido para entender a ações dele no diálogo, nos estudos das leis: ele pesquisava e ia debater sabendo que o que iria debater era fundamentado”, ressaltou.
Sobre o texto postado por Profeta, Espedito também disse haver um descaso com a ‘estrada’ percorrida na vida artística. “Eu penso o tempo todo nisso, quando você já tem um tempo de estrada me parece que você é deixado de lado. Se a gente continuar nessa linha nós nunca teremos identidade. Eu sou de uma geração, eu tenho 52 anos, comecei fazer teatro com 27. Não dá para reinventar a roda, ela já foi inventada”, finalizou.
Artista de teatro desde a década de 80, Jorge de Barros, de 57 anos, disse que acompanhou a luta de Profeta pela nova cultura após a divisão do Estado. “Perdemos mais um companheiro, sentimos que é uma derrota coletiva. Ele distante da gente, distante da arte. Fica uma ferida aberta, vamos nos tratar, vamos nos curar para ver se a gente consegue rever esse momento”.
Outra artista a lamentar a morte de Profeta foi Beth Terras, de 61 anos. “Mesmo sendo funcionário público ele nunca deixou de bater de frente”, disse. As dificuldades da vida na arte, ainda mais quando se é um artista idoso é unânime. “Eu vejo um cenário triste. Nós artistas, até uns anos atrás a gente existia, hoje a gente não existe. Hoje eu vejo uma política arcaica mais do que era”, opinou Beth.
A história, luta e arte de Profeta encoraja artistas a seguirem derrubando ditaduras e vencendo sistemas opressores. Segundo o artista de teatro e circo Anderson Lima, de 41 anos, Profeta é uma de suas principais inspirações. “O Profeta me impressionou porque ele não mostrava só coragem ao falar, ele tinha uma fala agressiva para alguns, um cara muito conhecedor da Lei. Fui tendo Profeta como referência, não ficava no plano emocional, era um cara muito generoso, tinha uma visão cultural participativa, uma visão de Cultura ampliada, de gestão cultural incrível. Ele colocou o governo na Justiça, ele sempre criticou o governo mesmo estando no governo”.
Profeta mais do que tudo, deixa grande saudade!
VEJA ABAIXO A PUBLICAÇÃO FEITA EM REDE SOCIAL POUCO ANTES DE SUA MORTE:
Mas…pra você eu deixo essa mensagem:
Se eu morrer, faça-me um favor.
Chore o quanto quiser, mas não brigue com Deus por Ele haver me levado. Se não quiser chorar, não chore.
Se não conseguir chorar, não se preocupe.
Se tiver vontade de rir, ria.
Se alguns amigos contarem algum fato a meu respeito, ouça e acrescente sua versão.
Se me elogiarem demais, corrija o exagero.
Se me criticarem demais, defenda-me.
Se me quiserem fazer um santo, só porque morri, mostre que eu tinha um pouco de santo, mas estava longe de ser o santo que me pintam. Era apenas um profeta de mentirinha.
Se me quiserem fazer um demônio, mostre que eu talvez tivesse um pouco de demônio, mas que a vida inteira eu tentei ser bom e amigo.
Se falarem mais de mim do que de Jesus Cristo, chame a atenção deles. Se sentir saudade e quiser falar comigo, fale com Jesus e eu ouvirei. Espero estar com Ele o suficiente para continuar sendo útil a você, lá onde estiver.
E se tiver vontade de escrever alguma coisa sobre mim, diga apenas uma frase: ‘ Foi meu amigo, acreditou em mim e me quis mais perto de Deus!’ Aí, então derrame uma lágrima.
Mas, não fique nisso…sorria sempre e passe para todos o que eu não consegui: “Ame o seu próximo como a si mesmo”.
O Fórum Setorial de Cultura emitiu nota de pesar:
No seu perfil do Instagram, a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul também fez uma nota de pesar sobre a morte de Profeta. “Diante desta irrecuperável perda nos solidarizamos com os amigos e familiares”.
Antes de se aposentar, Edson da Silva também atuou no MIS (Museu da Imagem e do Som) como técnico de cinema e vídeo.
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