Imagine a seguinte situação: você recebe o diagnóstico de catarata, passa por diversos exames, aguarda na fila do SUS por uma vaga de cirurgia por quase um ano e quando enfim consegue, descobre que pode perder a visão por contrair uma bactéria no hospital. Em Campo Grande, este é o pesadelo que Cleide Salentim dos Santos, de 51 anos, vive desde setembro de 2024.
Documentos enviados pela autônoma ao Jornal Midiamax mostram que a solicitação de cirurgia foi feita em 14 de novembro de 2023. O procedimento, no entanto, foi realizado no dia 10 de setembro de 2024, no Hospital São Julião, referência em cirurgias oftalmológicas na Capital.
Conforme Cleide, todo o seu quadro era acompanhado por uma especialista da instituição, mas, no momento do procedimento, uma “doutora residente, não formada, sozinha, fez a cirurgia”. Ela pontua ainda que conversou com a médica residente, que estava sozinha no centro cirúrgico e foi a responsável por assinar a receita com os medicamentos para pós-operatório, mas não imaginava que ela não tinha habilitação para o procedimento.
“Foi ela que fez a cirurgia e dentro do centro cirúrgico só estava ela. Ela até falou pra mim: ‘Quem faria sua cirurgia seria a doutora XXXXXX, mas eu vou fazer sua cirurgia’. Aí depois eu descobri que ela era residente e não profissional formada na especialidade”, afirma.
“Eu saí de lá com essa bactéria, porque eu entrei no hospital simplesmente com um pouco de catarata e fiz a cirurgia. Já acabando a anestesia, eu senti que meu olho estava estranho. Quando essa médica residente tirou o tampão, no dia seguinte, já não enxerguei mais nada e comecei a sentir muita dor. Desde então, praticamente todos os dias estou indo lá [Hospital São Julião]”, acrescenta.
Pós-operatório
Devido às dores intensas, Cleide buscou o Hospital São Julião a fim de realizar exames que pudessem identificar a bactéria e assim, iniciar um tratamento que revertesse a perda de visão. Lá, realizaram exames iniciais e aplicaram uma injeção de vancomicina em seu olho. O medicamento é um antibiótico utilizado no tratamento de infecções bacterianas.
“No começo eles até admitiram que eu tinha uma infecção, mas depois da injeção passaram a dizer que era só uma alergia. Só que, mesmo sem poder, eu já tinha pago uma consulta particular e a médica já havia feito um exame que constatava infecção e uma provável rejeição da lente”, explica.
Conforme Cleide, sem conseguir assistência do hospital responsável pela cirurgia, a médica da clínica particular fez um encaminhamento para a Santa Casa de Campo Grande, com a alegação de que “o São Julião não tem aparelhos, nem condições de tratar esse tipo de infecção, que é gravíssima”. A melhor opção seria a Santa Casa.
Com encaminhamento em mãos, Cleide buscou a Santa Casa, sem sucesso. “Cheguei lá em um plantão de sábado. O médico que estava de plantão falou: ‘não sei o que fizeram no seu olho. Se você quiser aguardar, vou tentar entrar em contato com a sua doutora para ver qual procedimento foi feito. Não posso fazer nada”, conta.
“Ele não me examinou. Pediu para eu aguardar terminar os atendimentos, mas o hospital estava lotado. Ficaria lá por horas e não conseguiria ser atendida. Eu estava morrendo de dor. Lógico que não aguentei e voltei pra casa. Eu precisava de um atendimento ali, com urgência”, pontua.
Novo encaminhamento
Após a primeira tentativa, Cleide voltou a se consultar com a médica especialista da clínica particular, que novamente a encaminhou para a Santa Casa. Dessa vez, a orientação era que ela buscasse por internação e realizasse uma revalidação de rejeição e bactéria.
“Cheguei na Santa Casa, fui muito mal atendida. A atendente disse que Santa Casa não é portas abertas. Me mandou para o UPA. Eu cheguei lá às 17h30, fiquei aguardando vaga até 10h e a vaga saiu exatamente para o São Julião, onde eles não estão fazendo questão nenhuma de me tratar”, lamenta.
Procurada pela reportagem, a Santa Casa informou que todos os encaminhamentos, sejam de oftalmologia ou de outras especialidades, são regulados conforme os preceitos da regulação municipal. Assim, o paciente necessita passar por atendimento na Rede Municipal para ser emitido o encaminhamento para regulação e, posteriormente, direcionado para atendimento ambulatorial ou hospitalar, conforme a situação.
Reforçou ainda que a Santa Casa de Campo Grande não possui autorização nem autonomia para realizar encaminhamentos de outros hospitais. Assim, os encaminhamentos feitos pela clínica particular são inválidos.
Retorno ao Hospital São Julião
Com o encaminhamento da Upa para o Hospital São Julião, Cleide retornou ao hospital responsável pela cirurgia para uma nova consulta.
“A doutora XXXXXXX, que me atendeu no São Julião, falou que meu problema era psicológico e que eu tinha que retornar ao trabalho, que eu não tinha nada no meu olho. Falei: ‘doutora, quem é que sente dor psicológica? Faz quase dois meses que fiz essa cirurgia, quase todos os dias eu estou aqui procurando uma melhora, procurando uma resposta. Como que a senhora vem falar que é dor psicológica, que eu preciso trabalhar?’”, afirma.
Conforme a paciente, a administração do Hospital foi procurada duas vezes e afirmaram que dariam toda a assistência necessária, mas, para ela, parecem não se importar com sua condição de saúde.
“Eles estão me negando assistência, essa é a verdade. Porque a doutora que me atendeu na rede particular já deixou bem claro que quanto mais demorar para eu ser atendida e passar por tratamento, menos chances terei de voltar a enxergar. Então, que tipo de apoio estão me dando?”.
Pedido de exames
Em uma terceira consulta no Hospital São Julião, Cleide disse que o médico recomendou dois exames: tomografia e campimetria. Juntos, eles somam R$ 650, dinheiro que Cleide afirma não ter já que, devido a sua perda de visão, precisou parar de trabalhar.
“Sou autônoma, preciso dos meus olhos para trabalhar. Não estou enxergando e sinto muita dor todos os dias. Minha família está me auxiliando com os medicamentos e alimentação. Como que vou pagar R$ 650 em dois exames? Antes disso eu não tinha nada, só a catarata que me limitava um pouquinho. Hoje eu não tenho mais vida, eu não posso trabalhar, eu não posso fazer nada, eu estou dependendo dos outros para comprar o remédio. Minha vida acabou, simplesmente”.
Cleide afirma ainda que, em uma de suas idas ao Hospital, enquanto falava ao telefone com a irmã, comentou em voz alta o que estava acontecendo. Ao desligar o celular, três pessoas foram até ela dizendo que estavam passando por situação similar.
“Um disse pra mim: ‘estou sofrendo da mesma coisa, isso também aconteceu comigo’. O outro senhor falou: ‘com minha esposa aconteceu assim. Ela entrou para operar e saiu cega’”.
Hospital São Julião
A reportagem procurou o Hospital São Julião para esclarecimentos. Sobre a informação passada por Cleide, de que estaria perdendo a visão, o Hospital afirma que “a paciente não perdeu a visão do olho esquerdo, e que no primeiro exame pós-operatório constatou-se que não havia complicações”. Pontuaram ainda que havia “ausência de sinais de infecção e apenas um desconforto leve e tolerável, natural dessa condição”.
Conforme a nota, “a paciente apresenta um processo inflamatório leve e foi atendida no dia 25/10 por três oftalmologistas, que solicitaram exames adicionais – como tomografia e campimetria – para determinar a necessidade de uma intervenção cirúrgica ou um tratamento clínico”, cujo valor, Cleide não consegue arcar.
Sobre a afirmação de que uma médica residente realizou o procedimento cirúrgico sozinha, o Hospital negou e pontuou que “ela estava devidamente autorizada e sob supervisão direta do preceptor, que estava presente” no centro cirúrgico.
Ainda conforme a nota, a injeção aplicada é “uma abordagem natural, como procedimento terapêutico para essa situação” e que “a paciente está em atendimento hoje [30 de outubro] no hospital”. Cleide nega. O Hospital reitera que o “tratamento está sendo conduzido com rigor técnico” e que entendem que “a paciente pode não estar familiarizada com os procedimentos médicos e, embora tenha manifestado sua opinião sobre o tratamento”, o hospital confia “na expertise de nossa equipe, composta por profissionais altamente capacitados”.
Na última segunda-feira (28), Cleide acionou a Defensoria Pública e aguarda novas orientações.
“Eu preferia ficar com uma catarata, que levaria alguns anos pra eu ficar cega, do que fazer uma cirurgia e passar por tudo isso, acabar perdendo minha visão de uma vez e sofrer com tanta dor”, finaliza Cleide. Midiamax