Diante de casos de violência doméstica, juízes e juízas devem ordenar a apreensão de armas de fogo do agressor, mesmo que seja necessária a busca domiciliar ou pessoal do revólver. Essa é a nova recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aos magistrados brasileiros, na tentativa de prevenir novos crimes contra as mulheres. Em duas décadas, quase metade dos feminicídios foi por arma de fogo.
“A posse e a manutenção de arma de fogo colocam a mulher em risco maior. Muitas vezes, a vítima retorna para o convívio com o agressor”, diz a juíza Domitila Manssur, integrante do grupo de trabalho do CNJ que elabora ações de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. “Ainda que ela não volte, o agressor continua com a possibilidade de usar a arma contra a vítima”, acrescenta ela, do Tribunal de Justiça de São Paulo.
A orientação do CNJ passou a valer esta semana. A Lei Maria da Penha prevê que o policial verifique se o agressor tem posse (direito de ter em casa ou no local de trabalho) ou porte de arma (direito de circular com o equipamento), notificar a ocorrência da violência doméstica à autoridade que fez a concessão e determinar a apreensão imediata. Nem sempre é o que ocorre.
A nova diretriz do CNJ dá mais autonomia aos juízes e promete tornar esse processo mais rápido. A gestão Jair Bolsonaro tem ampliado o acesso de cidadãos comuns a armas de fogo, uma bandeira de campanha. Desde 2019, foram mais de 30 normas nesse sentido, incluindo a redução de exigências para direito à posse, aumento do número de armas ou munição permitidas e frequência menor de testes psicológicos para quem deseja ter esse tipo de proteção.
Como resultado, os cidadãos estão mais armados. Entre 2019 e o ano passado, os brasileiros registraram 320 mil novas armas na Polícia Federal. De 2012 a 2018, o total havia sido de 303 mil. As autorizações concedidas pelo Exército a caçadores, atiradores esportivos e colecionadores também bateram recorde: 160 mil nos últimos dois anos. Bolsonaro sustenta que ter a arma assegura o direito à legítima defesa pessoal. Estudos científicos, porém, apontam que a maior circulação de revólveres e outros equipamentos do tipo aumenta a violência e eleva o risco de tragédias e acidentes em casa, cujo autor é conhecido da vítima. O Ministério da Justiça não comentou.
EX-MARIDO
A operadora de caixa Meire (nome fictício), de 40 anos, ainda está em choque após quase ser atingida por um tiro nesta semana, horas depois de ter se separado do ex-marido, um policial militar aposentado. Ele invadiu o local de trabalho da vítima, ameaçou funcionários e fez um disparo, mas errou o alvo.
O segundo tiro falhou. Os dois moram no interior paulista e, em julho, ela já havia obtido medida protetiva de urgência contra ele, por ameaças e agressões. Escondida na casa de amigos, em local desconhecido pelo suspeito, ela falou com a reportagem sob anonimato. “Tenho medo, muito medo, pois ele ainda não está preso. Não sei o que pode fazer. Ele ficou muito bravo por eu ter entrado com o pedido de divórcio, mas não podia mais continuar vivendo assim, sofrendo agressões e ameaças.”
Na tentativa de matar a operadora de caixa, o ex-marido também ameaçou colegas de trabalho de Meire. A Delegacia de Defesa da Mulher local informou ter oferecido abrigo a Meire, mas ela preferiu a casa de amigos. Já a PM disse que a arma, que já foi apreendida, não pertence à corporação. Na pandemia, segundo especialistas, aumentaram os crimes de violência doméstica, uma vez que as famílias passaram a ficar mais tempo em casa, muitas vezes em situação de vulnerabilidade econômica. Também cresceu o risco de subnotificação, diante do convívio social reduzido e da dificuldade de ir à polícia fazer uma denúncia.
Para Cristina Neme, coordenadora de Projetos do Instituto Sou da Paz, a medida do CNJ é importante porque a violência doméstica tem um caráter cíclico e de repetição. “Se não interrompida, pode se agravar.” De 2000 a 2019, diz levantamento do Sou da Paz com dados oficiais, 51% dos assassinatos de mulheres no Brasil foram por arma de fogo. A maioria era negra.
CONJUNTO
A recomendação aos magistrados se soma a outras medidas recentes do CNJ nessa área. Em agosto, o órgão solicitou que juízes analisem, em até 48 horas, os casos de descumprimento de medidas protetivas concedidas a mulheres que enfrentam violência doméstica. Isabela Del Monde, cofundadora da Rede Feminista de Juristas, elogia o esforço. “O CNJ divulgou semana passada um protocolo de gênero para julgamentos:”, diz ela, que também coordena o MeToo Brasil, iniciativa mundial para ampliar a voz de vítimas de violência.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.