A terapeuta e estudante de psicanálise Maria Virginia Coser, 37, conta que é filha de um pai pedófilo e de uma mãe com transtorno de personalidade narcisista. Ela só se deu conta dos abusos que sofreu na infância pelo pai ao ver uma cena de violência sexual na novela -e os crimes cometidos por ele impediam que ela crescesse em um só lugar.
“Ao olhar para trás, ainda muito criança, lembro de ter sido trancada no banheiro, por motivos que desconheço, pela minha mãe.
Aquilo seria apenas o início de uma infância marcada por abusos físicos, sexuais e verbais cujas consequências ainda carrego. Nasci em 1983, em Vitória. Morávamos em uma casa simples no Morro do Jaburuna, na cidade vizinha, Vila Velha. Meu pai era mestre de obras e minha mãe era funcionária da Secretaria de Educação do Estado. Foi a primeira de uma série de casas e cidades em que morei.
As mudanças de bairro e cidades se tornaram constantes na minha família, sempre que os segredos obscuros do meu pai ameaçavam vir à tona. Além de pedófilo, ele era alcoólatra, com vício em jogos de azar e prostitutas. Minha mãe encobria os crimes sexuais dele.
Minha infância foi marcada por dificuldades financeiras, por abuso sexual e por lembranças de abusos psicológicos por parte de uma tia, que tinha o hábito de ligar uma furadeira, colocando próximo à minha cabeça para conter o meu choro. Minha mãe às vezes me abraçava em uma noite chuvosa para me proteger dos trovões, às vezes me deixava trancada.
Durante muito tempo, me questionei se eu havia também sofrido abusos sexuais por parte do meu pai, pois eu não conseguia ter memórias disso. Era como se determinadas lembranças tivessem sido apagadas.
Eu desconfiava, mas tive certeza de que havia sofrido abuso sexual na infância por um gatilho emocional. Em 2017, quando estava assistindo a uma cena de abuso de uma personagem da novela “Do Outro Lado do Paraíso”, passei mal e fui socorrida por uma amiga psicóloga, que me explicou sobre o termo “recalque”.
Era a resposta que eu precisava ter, porque eu nutria muito ódio pelo meu pai. Me lembro da minha mãe me dando banhos de assento à noite, quando eu tinha uns 5 anos, por eu sentir muitas dores na vagina.
Pais faziam brincadeiras sádicas
Quando descobri o que era o transtorno de personalidade narcisista, tudo fez sentido. Extremamente controladora e manipuladora, comigo e com as pessoas próximas, ela torcia fatos em benefício próprio, sempre me expondo ao ridículo. Tanto ela quanto meu pai faziam brincadeiras sádicas comigo, como me colocar perto de objetos que me causavam pavor e ou me abandonar na multidão. Hoje, é muito evidente para mim que ela além de narcisista, também tinha traços de psicopatia.
Depois da cena de novela, eu precisava resgatar as memórias da minha infância. Minha primeira babá me confirmou que desconfiava dos abusos sexuais. Procurei minha vizinha, que admitiu que o meu pai a molestava. Conversei com outras colegas de infância que me relataram que meu pai costumava mostrar o pênis para elas, tentava passar a mão nelas. Não sei dizer quantas vítimas ele fez.
Para piorar, aos 8 anos, sofria bullying de amigos da rua, meninos e meninas, os mesmos que eram também assediados pelo meu pai. Nessa época, sofri abusos sexuais dos irmãos mais velhos dessas crianças, que se achavam no direito de me molestar pelo fato do meu pai ter assediado as irmãs deles, era como se eles buscassem uma vingança através de mim.
Na adolescência, presenciei a mãe de uma menina de 5 anos, vizinha nossa, expondo para a minha mãe que a filha dela havia sido molestada pelo meu pai, minha mãe aos prantos, implorava para que ele não fosse denunciado. Outras denúncias vieram à tona.
Minha mãe, minha megera
Minha mãe o protegia, encobria seus crimes de pedofilia. Ela sempre dava um jeito de defendê-lo, negando abusos, chorando. De Vila Velha partimos para Vitória em 1985, no ano seguinte fomos para a Cidade da Serra, em seguida para Guarapari em 1989. Lá, mudamos de bairros diversas vezes nos anos 1990/1991, e permanecemos até 1995/1996, quando os meus pais se separaram. Eles voltaram a ficar juntos anos depois.
Abusadores sabem escolher suas vítimas. Meu pai nunca tocou em meninas que foram bem cuidadas, que tinham pais presentes, nunca tocou em uma das minhas primas, cujo pai era delegado.
Por que a minha mãe abafou os crimes sexuais dele contra a própria filha e outras tantas crianças? Foi uma pergunta que eu me fiz várias vezes.
Acho que eles partilhavam da perversão. Em 2007, após me relacionar durante dois anos com um estrangeiro em um relacionamento também abusivo, ele me disse que meus pais não eram normais. Eu já sabia que havia algo de errado na minha família e eu estava decidida a não voltar para a casa deles.
Comecei a me prostituir em uma boate, dormia na rodoviária, passei fome. Tive uma adolescência conturbada, com relações abusivas, excesso de álcool (tive coma alcoólico aos 17 anos), cercada por traficantes, prostituição e depressão. Ao 20, busquei ajuda e fui tratada por o psiquiatra do serviço público de Vitória, que me ‘dopava’ com remédios para eu não cometer suicídio.
O meu passado afetou a minha vida em todas as áreas: profissional, financeira, social e amorosa. Acabei tendo relacionamentos abusivos por ter naturalizado o abuso, e eu não conseguia perceber que as pessoas estavam agindo dessa forma comigo. Escapei de outras tentativas de estupro.
Há um ano venho fazendo acompanhamento psicológico e mudei radicalmente a forma de me relacionar com as pessoas. Faço tratamento para hiperprolactinemia, uma disfunção hormonal causada pelo estresse pós-traumático. Meu corpo recebe uma alta carga de cortisol ao sair de casa ou se estou em contato com pessoas. Gera um estresse físico e psicológico que provoca cefaleia conhecida como enxaqueca suicida.
Hoje eu tenho uma nova família: um marido e duas filhas. Eu não mantenho mais contato com minha mãe desde 2018, quando ela tentou manipular minha filha mais velha.
Hoje, aos 37, sou estudante de psicanálise e trabalho como terapeuta ayurveda. Criei um canal no Youtube onde abordo sobre o tema “narcisismo materno”, compartilhando minhas experiências pessoais e ajudando outras pessoas que passaram ou estão vivenciando situações semelhantes.
Entendi que a minha história poderia ajudar outras pessoas a se encontrarem com a verdade, se libertando da culpa que carregaram durante anos. Não se fala sobre mães abusivas, não se fala de nenhuma mãe cruel em documentários na Netflix.
A pergunta mais comum que eu ouço, é se eu já perdoei os meus pais. Eu o perdoei no seu enterro. Perdoei minha mãe também, mas ela jamais vai me pedir perdão. Na mente dela eu sou a culpada. Eu não pretendo voltar a manter contato. Também me questionam se eu consegui superar todos os traumas do passado. Não acredito que seja possível superá-los, mas é possível ter uma vida saudável apesar deles.” UOL